A crise do crédito nos Estados Unidos vem ganhando cada vez mais espaço nos noticiários econômicos.
O principal fator para isso foi o fechamento de um banco regional que fica em Santa Clara, na Califórnia – portanto, dentro do Vale do Silício, onde operam várias startups e outras empresas de tecnologia.
Na sequência, outros dois bancos também quebraram, o que começou a gerar grande apreensão.
Enquanto isso, no Brasil, grandes empresas começaram a entrar com processos de recuperação judicial e duas financeiras foram liquidadas pelo Banco Central.
Será que existe uma relação entre esses fatos e o Brasil pode ser afetado pela crise do crédito norte-americano?
Em resumo: há motivo para preocupação, mas não para pânico.
Para entender melhor, vamos mostrar neste artigo como surgiu a crise do crédito norte-americano e por que ela é diferente do cenário brasileiro.
Entenda a crise do crédito nos EUA
A taxa de juros dos Estados Unidos vem subindo desde o começo de 2022, passando de 0,08% em abril de 2022 para a faixa entre 5% e 5,25% ao ano em maio de 2023.
O objetivo do Federal Reserve (Fed), o Banco Central dos EUA, é conter a inflação, que já vinha em alta desde 2021.
Para ter uma ideia, o Índice de Preços ao Consumidor (IPC), medido pelo Bureau of Labor Statistics, saltou de 5%, em junho de 2021, para 9,1% em julho de 2022, chegando a um recorde de quase 40 anos.
Foi esse resultado que levou o Fed a elevar os juros.
A medida parece ter dado resultados, já que depois de bater recorde, o IPC voltou a cair, chegando em maio a 4,9%.
Porém, a taxa de juros alta tem várias consequências para as empresas.
Neste cenário, o crédito fica mais caro e o poder de consumo da população diminui.
Assim, as empresas perdem receita e, se enfrentam dificuldades, fica mais difícil contrair empréstimos.
Por consequência, os índices de inadimplência e os saques de depósitos bancários aumentam, derrubando os preços dos ativos e prejudicando os resultados dos negócios.
Enfim, a roda da economia gira com menos força.
Esse cenário é chamado de credit crunch, ou seja, uma forte retração na oferta de crédito pelos bancos.
Crise dos bancos
Nos Estados Unidos, a súbita elevação nas taxas de juros acabou se mostrando uma verdadeira armadilha para alguns bancos de médio porte.
Desde abril de 2023, os noticiários têm dado destaque ao fechamento dos bancos Silicon Valley Bank (SVB), First Republic e Signature Bank.
O SVB precisou encerrar as operações depois que houve uma corrida para retirar fundos do banco, o que comprometeu sua solvência bancária.
Para entendermos por que isso aconteceu, vamos voltar um pouco mais no histórico das taxas de juros norte-americanas: de 2019 a março de 2020, o índice caiu de 2,5% para 0,25% e ficou nesse baixo patamar até março de 2022.
Com as taxas baixas, os depósitos bancários no país aumentaram em US$ 5,4 trilhões, mas apenas 15% desse total foi direcionado para empréstimos.
Os outros 85% foram investidos em ações, títulos do governo norte-americano e de empresas, entre outros.
Foi o caso do SBV, que aplicou em títulos de longo prazo para obter um retorno maior, quando a taxa de juros ainda era baixa.
Com a elevação, porém, esses títulos ficaram desvalorizados.
Vale lembrar que, por ser do Vale do Silício, o SBV atende muitas startups e outras empresas de tecnologia.
Em dificuldade para captar investimentos, esses clientes começaram a fazer saques.
O banco, então, precisou vender seus títulos.
Após fazer o anúncio da venda, vários correntistas correram para tirar seu dinheiro do banco, comprometendo suas operações.
Assim, o banco perdeu solvência, ou seja, sua capacidade de cumprir seus compromissos financeiros.
Teto da dívida, crise no crédito e crise bancária
Todo esse cenário que mostramos acima acaba comprometendo o crescimento econômico.
Desde 1971, uma queda de 1% no crédito privado dos Estados Unidos está correlacionada a uma diminuição de 1,3% no crescimento do PIB norte-americano.
O dado foi apresentado em um artigo (em inglês) do diretor de Soluções Temáticas da empresa norte-americana, Scott Helfstein, publicado no portal da Global X ETFs.
Ou seja, historicamente, a baixa na oferta de crédito impacta no crescimento econômico.
E o cenário de incertezas se agrava a partir da crise no teto da dívida, uma situação de natureza mais política do que econômica, mas que tem alto impacto nas finanças do país.
O motivo é a demora para que se chegue a um acordo para aumentar o teto da dívida do governo dos Estados Unidos.
Atualmente, a Casa Branca não pode tomar emprestado mais que US$ 31,4 trilhões.
Porém, esse valor já foi atingido.
E se o teto não fosse aumentado, o governo correria o risco de esgotar suas reservas e impor um calote intencional – ou seja, deixaria de arcar com suas obrigações.
Esse cenário atingiria em cheio muitas empresas, gerando uma recessão com forte impacto na economia global.
Acordo saiu aos 45” do segundo tempo
Um acerto para resolver o impasse tem sido dificultado pelas disputas entre os partidos Democrata, do presidente Joe Biden, e Republicano, do presidente da Câmara dos Representantes, Kevin McCarthy.
Ainda assim, o acordo para elevar o teto foi aprovado na Câmara no dia 31 de maio.
Mesmo assim, o cenário de incertezas causado pela demora na realização do acordo e a expectativa de medidas de corte de gastos são combustíveis para agravar a crise bancária.
Cenário econômico nos EUA x Brasil
Quando falamos sobre o impacto das altas taxas de juros, é impossível não lembrarmos da situação brasileira.
Por aqui, a taxa Selic teve um salto de 2%, em janeiro de 2021, para 13,25% em junho de 2022.
Quase um ano depois, segue intocada pelo Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central.
Para piorar a situação, o mercado nacional foi abalado logo no início do ano pela crise das Americanas, que em 11 de janeiro divulgaram a descoberta de um rombo de R$ 20 bilhões – número que logo saltou para R$ 40 bilhões.
A partir de então, teve início um efeito cascata que seguiu com os seguintes eventos:
- A companhia de telecomunicações Oi fez um segundo pedido de recuperação judicial
- A cervejaria Petrópolis, da marca Itaipava, também pediu recuperação judicial
- A varejista Amaro pediu recuperação extrajudicial
- A Livraria Cultura entrou com pedido de falência
- A Light, concessionária de energia elétrica do Rio de Janeiro, pediu recuperação judicial.
Além disso, o Banco Central decretou a liquidação das financeiras Portocred e BRK, da administradora de consórcios Nacional Valor e da cooperativa de crédito Municred.
Entre as razões, a instituição citou insolvência patrimonial – quando as dívidas superam o patrimônio – e, em alguns casos, “graves violações às normas legais”.
O Fundo Garantidor de Crédito (FGC) entrou em ação para ressarcir os investidores.
As diferenças
Embora esses fatores possam causar uma redução das ofertas de crédito, existem diferenças entre o momento pelo qual o país atravessa e o credit crunch dos Estados Unidos.
Segundo comunicado divulgado em maio pelo Banco Central, a principal preocupação em relação às ofertas de crédito tem relação com pessoas físicas e famílias.
A instituição destaca também que as provisões de banco criadas para cobrir eventuais situações de inadimplência não devem causar um grande impacto no Sistema Financeiro Nacional.
Por fim, boa parte dos correntistas são clientes de bancos de grande porte, com menos risco de insolvência.
E mesmo os bancos regionais estão mais acostumados a trabalharem em situações de crise.
Qual o impacto da crise do crédito nos EUA no Brasil?
Ainda não há informações sobre um impacto direto da crise de crédito dos Estados Unidos sobre outros países, como aconteceu em 2008.
Afinal, justamente por causa da crise do subprime, os bancos norte-americanos e globais passaram a ter regulamentações mais restritivas, o que tornou o sistema financeiro mais seguro.
Além disso, embora a crise do crédito tenha impactado bancos regionais, as principais instituições financeiras do país não apresentam nenhum tipo de descompasso entre ativos e passivos em seus balanços.
E o risco de prejuízo para startups brasileiras que tenham investido no SBV foi descartado pelo anúncio do Fed, garantindo aos clientes o acesso integral aos valores perdidos com a crise.
Especulações
Ainda assim, existem muitas especulações sobre como a quebra do SBV pode influenciar na economia brasileira.
Um dos possíveis reflexos pode ser positivo: a redução na taxa de juros.
Já faz quase um ano que o Copom vem mantendo a Selic em 13,25%, em meio a pressões de integrantes do governo federal para uma redução.
Como a inflação norte-americana vem desacelerando, existe uma tendência de que o Fed comece a reduzir sua taxa, o que pode se refletir em uma medida semelhante por parte do Banco Central do Brasil.
Por outro lado, investidores internacionais podem comparar o colapso do SVB com a situação das empresas que mostramos no tópico anterior.
Dessa forma, poderiam procurar ativos que considerassem mais seguros em outros países.
Um movimento massivo nesse sentido poderia provocar a desvalorização do real em relação ao dólar e a outras moedas, o que não seria bem-vindo em um cenário de juros altos para combater a inflação.
Além disso, a incerteza poderia levar os players do mercado a postergar decisões, podendo colocar um freio no crescimento econômico.
O que diz o FGC sobre o cenário brasileiro?
O Fundo Garantidor de Crédito (FGC) é uma entidade criada para proteger os clientes de instituições financeiras do Brasil de perdas por eventual falência ou liquidação de instituições bancárias.
O limite de valor para cada cliente em relação a uma instituição é de R$ 250 mil.
Recentemente, com a liquidação das financeiras Portocred e BRK, o FGC restituiu cerca de R$ 2 bilhões.
Isso porque quase 20% dos clientes ainda não deram entrada no pedido, o que pode ser feito facilmente por um app de celular.
A entidade acompanha todos os desdobramentos do cenário econômico brasileiro e mundial.
Já em dezembro de 2022, o diretor do FGC, Daniel Lima, avisava sobre a possibilidade dos bancos terem perdas por “emprestar dinheiro barato antes de o juro subir” em entrevista à Revista Forbes.
Ou seja, alertava sobre algo semelhante ao que aconteceu com o SVB.
Mas isso não quer dizer que o executivo preveja que o Brasil seja afetado pelo cenário norte-americano.
“Nenhuma ameaça de risco sistêmico”
Já em maio de 2023, após a quebra do SVB, Lima descartou o risco de uma crise bancária brasileira em uma outra entrevista, para o portal especializado em economia Seu Dinheiro.
“Brasil e EUA enfrentam ciclos de mercado de crédito muito diferentes. Não vejo nenhum risco, nenhuma ameaça de risco sistêmico por aqui”, afirmou o executivo.
Lima destacou que o mercado bancário brasileiro é mais centralizado em poucas grandes instituições, o que ajuda a proteger o sistema financeiro.
Além disso, mesmo as instituições financeiras de menor porte têm mais “experiência” para lidar com um mercado altamente volátil.
Se os executivos do SVB tivessem a mesma experiência, dificilmente teriam adquirido títulos públicos sem levar em consideração o duration – ou seja, o prazo médio para recuperar o investimento.
O executivo ainda considerou as quebras da BRK e da Portocred “eventos pontuais” causados por problemas conhecidos “há muito tempo”.
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